domingo, 25 de janeiro de 2009

Pessoa Especial


Quando fiz cinco anos minha mãe engravidou da minha irmã caçula. Lembro-me de ficar deitada com o ouvido na barriga dela, tentando ouvir o neném. E de fazer aquelas perguntas constrangedoras do tipo: "Como ele foi parar aí dentro?" "Como ele vai sair?"

Um dia fomos levadas, minha irmã mais velha e eu, para a casa da minha avó, pois a mamãe ia para o hospital "ganhar o neném". Estávamos ansiosas e perguntávamos todo o tempo pela mamãe e pelo neném.

Há 25 anos o exame de ultrasson não era tão popular nem tão sofisticado como hoje, de forma que não era feito obrigatoriamente no acompanhamento pré natal, então minha mãe nem chegou a fazer, por que a gravidez foi tranquila e muito saudável. Esperávamos que fosse um menino dessa vez.

Mas, dois dias depois, quando minha mãe chegou em casa sem o bebê, ficamos decepcionados: era outra menina e o bebê não viria logo, pois nascera "doente" e precisaria ser operado para melhorar. Choramos muito, e naquela confusão, ninguém se lembrou de explicar muito bem para minha irmã e eu o que estava acontecendo.

Quando finalmente conheci minha nova irmãzinha, achei que ela não parecia nada doente. Era um bebê lindo, rosado, cabelos pretos abundantes e olhos grandes e escuros, com cílios compridos e negros. Queríamos tocá-la todo o tempo e minha mãe jamais baixava a guarda, com medo que pudéssemos machucá-la. Apesar de ter perdido meu posto de caçulinha da casa, não me lembro de sentir ciúme, ou hostilizá-la, o que seria uma atitude normal. Eu sabia que ela era especial, e isso dava-lhe licença de tirar meu colinho.

Com o tempo descobrimos que a "doença" era um problema de formação conhecido como síndrome da espinha bífida, ou seja, uma parte da espinha dorsal não se completa, deixando os nervos da coluna expostos a lesões durante a gestação. Isso causou em minha irmã paraplesia nas pernas e lesões no aparelho urinário.

A infância dela foi marcada por cirurgias, fisioterapia, aparelhos ortopédicos. Aquilo se tornou natural em nossa família. Convivendo com uma pessoa com necessidades especiais, nunca achei extraordinário ver alguém de muletas, cadeirante, ou se locomovendo de forma diferente. Era normal para mim existirem pessoas diferentes no mundo.

Mas não é para a maioria das pessoas, que mal conseguem evitar aquele desagradável olhar compassivo, como se estivessem diante de um terrível sofrimento, ou de uma aberração. Esse olhar me irrita profundamente, mais até que o preconceito, pois o preconceito muitas vezes é resultado da ignorância, enquanto esse olhar é movido pela pena.

Não conheço um sentimento mais inadequado para se ter em relação à minha irmã do que pena. Ela é linda, saudável, inteligente. Personalidade forte, às vezes muito mau humorada, brava, excepcionalmente sensível e perceptiva, exageradamente preocupada com o próximo. E é a pessoa mais valente e forte que eu conheço. É por isso que sou tão intolerante com pessoas apáticas, que acham dificuldade em tudo, que não vão à luta, que se deprimem por coisas bobas, mesmo podendo caminhar normalmente, correr e trabalhar sem mais difculdades. Pessoas que jamais passaram por uma cirurgia dolorosa (ela já fez tantas que já perdi a conta). Sobretudo me irritam as pessoas que preferem ser vítimas e gostam de ser o alvo do intolerável olhar compassivo.

Outra coisa que me aborrece é ver o mundo tão pouco adequado para as pessoas com necessidades especiais. Fico puta quando um local público não tem rampa de acesso à cadeirantes, bebedouros mais baixos, orelhões, sinalização. Ainda bem que a conscientização está crescendo, e já existem leis a esse respeito. Mas vejo bares, boates, restaurantes sem adequação e acho um absurdo. São lugares que faço questão de não frequentar, por que desmonstram o desrespeito pelo ser humano.

Acho que a experiência da convivência com minha irmã me deu lições impagáveis, de superação, de amor, de fé e de força. Não é fácil, mas quem disse que as coisas fáceis são as melhores? E citando Dom Helder Câmara, numa frase que eu gosto muito:

Nada de ideais ao alcance da mão. Gosto de pássaros que se enamoram das estrelas e caem de cansaço em busca da luz.

***
O Hospital Sarah é centro de referência no tratamento de várias particularidades do aparelho locomotor e reabilitação física. Foi na Unidade de Brasília que o vocalista do Paralamas do Sucesso, Herbert Vianna foi tratado, recuperando grande parte de seus movimentos após um acidente. Em Belo Horizonte também existe uma unidade, onde minha irmã fez vários tratamentos e foi muito bem tratada, não só ela como toda a família. Um exemplo de primeiro mundo de tecnologia e compromisso com a vida.

3 comentários:

Menina MA disse...

Como a palavra pode conceder uma pintura diferente para cada pessoa que queira fazer bom uso dela.
A Carol deveria ler este script da vida dela. Iria deixá-la mais colorida e com um ideal iluminado.
beijos

Danielle Luciano disse...

Amiga, me emocionei demais com seu post. Sei do exemplo de superação que é sua irmã, e concordo com você que ela, assim como outras tantas pessoas com "problemas" iguais ou parecidos, são muito especiais!
Beijos!

Priscilla Nardini disse...

Fe como sempre vc arrasa nos textos ne!! Adorei e roubei uma frase pra por no meu orkut!!!!srsrsrs
Beijos